sábado, 26 de março de 2011

O título da meia-página seguinte (III-A-I-2-a)...

... É tirado de um trecho do "Livro do Desassossego" publicado em vida do autor:

A penúltima frase do primeiro parágrafo é difícil de perceber para quem como eu tem pouco vocabulário. "Estio " quer dizer "verão"; qual será então o sentido desta frase aparentemente redudante - na sua versão mais simples: «É verão mas verão»?

Nada que o meu bom velho dicionário "Novo Aurélio do século XXI" (como diz a capa) não possa decerto ajudar a esclarecer*: "verão" vem do latim "veranum", ou melhor "ver, veris" e significa (significava), ao contrário do que se poderia esperar, "primavera"!... (A nossa primavera será portanto "o primeiro verão").

A enigmática frase fica assim clara: «É verão mas, ainda, o primeiro verão» (isto no contexto dos devaneios atmosféricos e analíticos do nosso ajudante de guarda-livros lisboeta, de subtis cambiantes).

Apeteceu-me, quando li esse trecho, utilizar essa expressão nesta banda-desenhada para o início do episódio do nascimento do heterónimo Alberto Caeiro (e companhia), mais conhecido como "O Dia Triunfal"; aqui está.

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*: Dicionário publicado no Brasil, tem a vantagem de, para além de nos informar sobre a origem e o primeiro significado das palavras, apresentar-nos também as particularidades de cada variante nacional da língua portuguesa, o que feliz ou infelizmente já não é necessário.
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A segunda meia-página apresentada neste post (III-A-I-2-b)...

... tem mais que se lhe diga: é a primeira vez que eu utilizo conscientemente um texto de Fernando Pessoa, desvirtuando-o...

Refiro-me ao fragmento apresentado no último quadradinho, o início da versão menos conhecida do nascimento de Ricardo Reis (cuja primeira metade poderão ler no seguinte link) tendo o restante ficado inédito até 2003, por culpa da edição da obra em prosa do maior discípulo de Caeiro (de Manuela Parreira da Silva, na Assírio & Alvim).

Versão diferente da genése da heteronímia contada pelo próprio F.P. em final de vida ao jovem poeta e crítico Adolfo Casais Monteiro*, génese essa pouco fiável como é agora sabido ("O Guardador de Rebanhos" e "Chuva Oblíqua" não terão sido escritos num só e mesmo dia como o provam os documentos originais), tem este texto as seguintes particularidades: está datado de 1/2/1914 - mais de um mês antes do famoso dia 8 de Março (o triunfal), e remete (hipoteticamente?) o nascimento de Ricardo Reis para o dia 28 (ou até 29) de Janeiro desse ano, em moldes que seriam a meu ver muito melhor aplicados ao seu mestre...

«Não sei bem, não me recordo bem como tudo isto se desenvolveu (...) o Dr.Ricardo Reis morre onde nasceu, em minha alma (...) isto [...] é o seu enterro»...

Dada a complexidade do caso, optei por utilizar o final do texto ignorando as datas propostas** e, o que é pior, apagando o nome do heterónimo neo-pagão aí citado...

Tentei assim criar o ambiente propício ao aparecimento do autor de "O Guardador de Rebanhos", «o melhor que eu tenho feito - obra que, ainda que eu escrevesse outra Ilíada, não poderia, num certo sentido íntimo, jamais igualar, porque procede de um grau e tipo de inspiração (passe a palavra, por ser aqui exacta) que excede o que eu racionalmente poderia gerar dentro de mim»***.

A ver vamos.
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*: Ler aqui a célebre carta.
**: Ou melhor - não as transcrevendo mas seguindo as balizas temporais que elas definem.
***: Carta de 25/2/1933 para João Gaspar Simões.
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[^^^ Página nº 102].

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